“A morte dos colegas tem nos deixado muito mal. Quando uma amiga minha faleceu, percebi que era como se estivesse vivendo em uma roleta russa. Uma hora o canhão vai virar para você”, afirma Tânia Ortega, enfermeira de 56 anos, membro da Comissão Nacional de Qualidade do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen).
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“Por conta de tudo isso, nossa chance de cometer erros é muito grande. Há muita falta de preparo para salvaguardar os pacientes. Nunca pensei que fosse viver o que estou vivendo”, diz a enfermeira que recebe relatos de colegas de todos os municípios do interior de São Paulo. O estado, que registra até o momento o maior número de casos confirmados e mortes, é considerado o epicentro da crise do novo coronavírus no país.
Na região norte, no estado de Rondônia, a escassez bate à porta dos municípios de diversas formas, mas, sobretudo, no que se refere à falta de material adequado para atender pacientes com suspeita de covid-19, doença provocada pelo coronavírus, nas unidades de atendimento. Em Teixeirópolis, município localizado a 370 quilômetros da capital Porto Velho, com 4.778 mil habitantes, uma máscara precisa durar 24 horas.
“Tem gente lavando máscaras descartáveis para driblar a falta de equipamento”, afirma Celso Rogério de Araújo, enfermeiro e conselheiro do Conselho Regional de Enfermagem do estado. No município de Jaru, que possui quase 52 mil habitantes, as condições precárias são as mesmas. Ao contrário do que determinam as recomendações do Ministério de Saúde de que uma máscara de proteção deve durar de duas a quatro horas, enfermeiros racionam o único equipamento que recebem no dia.
O grande problema, segundo a enfermeira e técnica de laboratório da rede pública e privada do município de Alagoinhas, na Bahia, Magali Maria Dias Cazoni Padilha, é que a rotina de municípios afastados das grandes cidades já era precária antes da pandemia. “Havia falta de estrutura, material e insumos para trabalhar”, afirma. “Com o coronavírus, surge mais um problema porque, na prática, a organização das administrações municipais não existe. Não há interesse em sistematizar e organizar o serviço”, diz.
O Nordeste é uma das regiões mais afetadas pela precariedade. A enfermeira Mariluce Ribeiro, que trabalha em um hospital da Paraíba, afirma que na capital do estado, João Pessoa, as unidades estão improvisando leitos e desfazendo locais antes destinados ao descanso dos profissionais de enfermagem. Nas cidades de Pombal e Patos, no interior paraibano, nem mesmo os profissionais que trabalham nas unidades de terapia intensiva (UTIs) possuem a proteção recomendada.
"Os equipamentos que chegaram são doações de médicos, não têm máscaras para quem trabalha em UTIs, não têm capotes impermeáveis e os que temos são doações dos médicos. Essas cidades se sentem abandonadas pelos órgãos que deveriam ser fiscalizadores", afirma ela. Em Patos, explica a enfermeira, os profissionais de enfermagem recebem duas máscaras cirúrgicas para passar o dia.
O professor de saúde pública da Universidade de São Paulo (USP), Gonzalo Vecina Neto, explica que a dificuldade dos municípios de pequeno e médio porte é que não há recursos para enfrentar a pandemia. “Vai ser muito difícil para os pequenos estar no meio de uma confusão como essa. É um problema sem precedentes”, pondera.
Segundo ele, é preciso considerar que a covid-19 é uma doença característica de centros urbanos. “O contágio ocorre na medida em que acontecem os contatos, por isso a necessidade de isolamento”, afirmou. “Por isso, os casos explodem nas cidades de grande porte e nas capitais de todo o mundo.” Mas, apesar da baixa densidade populacional, os profissionais de saúde dos municípios de menor porte estão preocupados com o cenário que se aproxima nas próximas semanas.
Segundo os números divulgados na Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo é possível dizer que três em cada 10 casos de covid-19 ocorrem na capital e o restante na Região Metropolitana e em municípios do interior. Nesse sentido, o médico infectologista, coordenador do Comitê de Combate ao Coronavírus, David Uip, vem chamando a atenção para a "interiorização" da doença.
“Isso nos preocupa demais”, afirma Tânia. Segundo ela, a maioria dos hospitais do estado enfrenta dificuldades em relação à equipe de profissionais. “Os funcionários são quase todos idosos. É como se a probabilidade de eles morrerem já não incomodasse ou fizesse diferença”, afirma. Segundo ela, em alguns hospitais um enfermeiro chega a ficar responsável por 35 pacientes.
No hospital em que trabalha, Tânia relata que falta qualidade aos equipamentos de proteção. Além da falta de máscaras, ela afirma também que os aventais são confeccionados a partir de materiais permeáveis. “Um enfermeiro de UTI cuida de dez pacientes, se eu contaminar minha roupa, vou infectar todos. A propagação do vírus é muito rápida.”
Além disso, a enfermeira se queixa da falta de treinamento para enfrentar doenças infecciosas. “As pessoas, simplesmente, têm entrado em pânico.” Ela conta que tem recebido vídeos de colegas pedindo orientações sobre as vestimentas mais adequadas para tratar de casos de covid-19. “O pessoal do interior acaba abandonado, estamos em uma força-tarefa para um ajudar o outro.”
A sensação de falta de capacidade técnica para lidar com o avanço da doença é sentida não somente por profissionais de São Paulo, mas por equipes de hospitais de todo o país. “Precisávamos de treinamento e decidimos fazer reuniões para estudar as técnicas, orientações da Anvisa e do Ministério da Saúde por conta própria”, relata Magali Padilha, enfermeira e técnica de laboratório de Alagoinhas, na Bahia.
Uma opção para melhorar a capacitação desses profissionais, segundo Vecina Neto, da USP, é o amplo uso da telemedicina. “Para ajudar e apoiar os rincões do Brasil esse recurso pode ajudar muito, oferecendo encaminhamentos sobre o que fazer em determinadas situações clínicas.”
O enfermeiro Celso Araújo, de Rondônia, fez parte de um levantamento que reuniu 17 mil profissionais de enfermagem do estado para verificar condições de infraestrutura e logística para combater a covid-19. “Percebemos que há um grande déficit de equipamentos para atender a população”, afirmou. “O profissional de saúde fica com medo de voltar para casa e ao mesmo tempo não tem condições de se isolar”, afirma.
“O Brasil não estava preparado para essa pandemia, pegou todo mundo de surpresa e, sobretudo, os municípios pequenos que não têm estrutura física, psicológica nem material para lidar com um problema desse tamanho”, relata. Em alguns municípios de Rondônia, o paciente é colocado dentro de uma ambulância até receber o atendimento. “Ambulancioterapia é o nome que a gente dá”, diz. “Às vezes, uma unidade não tem médico e encaminha o paciente para um município maior desse jeito.”
Araújo afirma que em Teixeirópolis e Jaru as máscaras de proteção têm de durar 24 horas. “Tem gente lavando máscaras descartáveis por falta de equipamentos. Para não passar por isso, os enfermeiros estão comprando os próprios materiais de proteção.” A falta de estrutura e de material para trabalhar, segundo Magali Padilha, enfermeira e técnica de laboratório de Alagoinhas, na Bahia, era uma dificuldade recorrente em cidades distantes das capitais.
“Agora mudou para pior”, diz. “Há mais de três anos trabalhamos sem álcool gel. Percebemos que não há uma preocupação com a saúde.” Para o especialista em saúde pública da USP, é preciso criar soluções. “Até os anos 1990, esses equipamentos eram de tecido, de algodão. Paramos de usar porque tinha que lavar e esterilizar depois. Mas precisamos voltar a fazer uso desse tipo de material”, recomenda.
Cascavel, na Região Metropolitana de Fortaleza, é outra cidade que sofre com a falta de materiais. “O estado tem que se organizar não somente para a capital”, diz Márcia do Valle, enfermeira. “Aí fica faltando suprir os outros municípios.” Segundo ela, as doações não chegam ao hospital em que trabalha. “Estamos com 12 caixas de máscaras, cada uma com 50 máscaras. Se durar 15 dias é muito”, afirma.
A enfermeira diz ainda que não há leitos de UTI, nem respiradores. “Se o paciente precisar vai ser transferido para Fortaleza. Vai ser um caos porque não temos profissionais treinados para isso. Não tivemos instrução para trabalhar com pacientes com covid-19.”
A falta de testes para diagnosticar pessoas acometidas pela covid-19 é um dos fatores que colabora para a subnotificação da doença, mas não é o único. Problemas estruturais também colaboram para que o número não seja real em diversas partes do país. “Os municípios pequenos não têm preparo nenhum para fazer essa notificação, os hospitais têm problemas na internet para encaminhar os dados para as secretarias”, afirma Araújo, de Rondônia.
“Estou em São Miguel do Guaporé, na fronteira com a Bolívia. Tem profissionais de hospital de médio porte por aqui que não sabem para onde encaminhar as informações. Todos os pequenos passam por essa dificuldade.”
Em relação à testagem, os municípios do interior do país têm um funcionamento específico para a coleta. As cidades pequenas enviam os materiais para os Lacens (Laboratórios Centrais de Saúde Pública), localizados nas capitais. Profissionais do laboratório buscam os materiais nas cidades em datas agendadas, o que impacta no prazo para conclusão do exame. “Demora para sair o diagnóstico porque eles atendem todos os municípios”, diz Magali.
A técnica e enfermeira, que trabalha em um laboratório de coleta da cidade, afirma que o ritmo de trabalho aumentou muito por conta da pandemia. “Fazemos dez coletas por dia, o ideal seriam seis.”
A médica pediatra Helena Waldner, da cidade de Alto Paraíso de Goiás, que participou voluntariamente do Comitê de Combate ao Coronavírus da cidade, afirma que nas primeiras semanas a subnotificação era ainda mais intensa. “Percebemos que, diferentemente de outras doenças de notificação, as autoridades da vigilância não tinham acesso aos dados da cidade”, afirma. “Não é uma coisa fluida pelo fato de ser algo novo ou por ter uma rápida disseminação.”
Segundo a médica, a cidade chegou a receber três kits de testagem. “Fizemos rifas para ajudar a secretaria de saúde comprar testes e EPIs mais rapidamente”, afirma. “Não temos respiradores para pacientes graves, eles terão de ser enviados para Brasília.” A médica relata ainda que, somada à falta de testes e equipamentos, a cidade sofre com a ausência de equipes capacitadas para trabalhar com casos suspeitos. “O interior do Brasil ainda enfrenta esses agravantes.”
Um agravante que não pode ser desconsiderado são as condições psicológicas às quais estão submetidos os profissionais da saúde. Magali, de Alagoinhas, diz que teme o que pode acontecer com os hospitais lotados. “Vivo com a minha mãe de 74 anos e tenho uma filha de quatro. Nossa responsabilidade de estar na linha de frente gera um estresse muito grande. A pressão sobre a equipe é enorme”, diz. “Meu maior medo é ver a situação se agravar e não ter onde acomodar as pessoas.”
A enfermeira Suliane Novais Charneski trabalha no setor de urgência e emergência de um Pronto Atendimento Municipal de Telêmaco Borba, no Paraná, a 235 quilômetro da capital Curitiba. Ela atende pessoas com diversos tipos de sintomas, como febre alta, dores intensas, falta de ar, entre outros.
“Neste primeiro momento, ficamos apreensivos e angustiados por não saber ao certo onde está o inimigo. Todo cuidado ainda é pouco”, relata. Embora os procedimentos sejam revistos com frequência em função da pandemia, com base em protocolos para segurança dos profissionais, o receio com a rotina de trabalho é constante.
“Além de enfermeira, sou filha, neta e sobrinha. Meus familiares pertencem aos grupos de risco. O cuidado é redobrado quando chego em casa. Roupas e sapatos de trabalho são lavados e higienizados separadamente.”
Suliane tem trabalhado cerca de 60 horas por semana para dar conta do número de pacientes que chegam à unidade. “Trabalhamos seriamente com o que possuímos como materiais, estrutura física, conhecimento e técnicas, mas a nossa maior dificuldade é lidar com nossos medos e receios”, afirma. “Saber que podemos nos contaminar devido a uma falha no processo e, eventualmente, passar para nossos familiares, ou ainda não saber quando iremos voltar a ver aqueles que amamos é muito difícil.”
A Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo informou, por meio de nota que os serviços estaduais estão abastecidos com EPIs e materiais hospitalares. “A Secretaria já adquiriu mais de 42,2 milhões de itens até o momento, incluindo máscaras, luvas, aventais e outros materiais.”
Em relação à capacitação oferecida aos profissionais, a pasta informou que “as orientações aos profissionais de saúde têm sido comunicadas por meio de webconferências e documentos técnicos de proteção aos profissionais, amparados nas diretrizes do Ministério da Saúde e da Anvisa.” Segundo o órgão, as medidas assistenciais também foram disseminadas entre os serviços de saúde, com base nos protocolos do SUS.
Em relação ao trabalho de profissionais de saúde com mais de 60 anos, a secretaria informou que “os hospitais estaduais seguem todos os protocolos de segurança para profissionais de saúde e pacientes, assistindo qualquer pessoa que necessitar de atendimento. Seguindo este protocolo, qualquer colaborador com suspeita de COVID-19 será afastado para proteção da sua saúde e das demais pessoas que frequentam a unidade.”
O R7 também entrou em contato com as secretarias municipais de saúde das demais cidades e não obteve retorno até o momento da publicação da reportagem. Apenas a Secretaria de Saúde da Bahia informou que até o dia 12 de abril, a cidade de Alagoinhas havia registrado cinco casos de covid-19, sem nenhum óbito.
Segundo a pasta, o governo do estado abrirá uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento) em Alagoinhas com intuito de funcionar com uma unidade de primeiro atendimento para pacientes com suspeita de covid-19. Em caso de necessidade, o paciente poderá ser transferido para algum hospital de referência.
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