A casa de Pedro tem dois cômodos. Quem abre a porta dá de cara com a pia da cozinha, pratos sujos do almoço, restos de feijão e arroz que estão também nas panelas de alumínio em cima do fogão. A geladeira fica num canto do corredor estreito. Entre as paredes não há mais que um metro e meio.
À esquerda, na sala que também serve de quarto, uma cama de solteiro desarrumada de um lado, um sofá desbotado do outro. Entre os lençóis, dois capacetes de moto. Largada no chão, uma mochila verde-limão onde se lê Uber Eats.
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Pedro chega em casa às 19h30 de uma sexta-feira, depois de oito horas de trabalho num estacionamento no ABC Paulista. Ele senta na única cadeira da sala, preta e de escritório. A sua frente, na escrivaninha, computador, câmera GoPro, pau de selfie, microfone, caixas de som e fones de ouvido.
"Olá, motocas, sejam bem-vindos mais uma vez", é o que se ouve quando ele abre o YouTube.
Em um canal com 23 mil inscritos, Pedro Roseno posta vídeos sobre sua rotina como entregador de aplicativo, o que faz algumas noites por semana. Nas imagens, mostra seu trajeto, dá dicas sobre o serviço e exibe seus ganhos por hora. Mesmo com algumas críticas às tarifas ou aos riscos sofridos, o tom é de elogio. A lógica de sua fala é simples: o trabalho é fácil, a entrada é rápida e, no fim, o sucesso só depende de você.
"Falo que dá pra tirar até R$ 3 mil só com app", ele diz, balançando na cadeira.
"Tem pessoas que eu conheço que ganham isso. Um colega que trabalha na zona leste de bike tira de R$ 100 a R$ 120 por dia."
Do sofá, a reportagem pergunta quantas horas seu colega trabalha.
"Ele sai às dez da manhã e volta à meia-noite."
No Brasil, mais de 5,5 milhões de pessoas estão cadastradas em aplicativos de entrega e transporte, segundo o Instituto de Pesquisa Locomotiva. Com 12,6 milhões de desempregados, como apontaram os dados mais recentes do IBGE, e cada vez mais gente nas plataformas, surgiram dezenas de canais no YouTube pensados para esse público. Os mais populares têm mais de 400 mil inscritos e dão origem a negócios como cursos e lojas virtuais.
Além de um começo parecido — tirar as dúvidas de quem quer entrar nos apps -, os canais têm em comum o discurso motivacional, presente em cada cena: seja seu próprio chefe, escolha seu horário e ganhe pelo seu esforço. Os princípios são os mesmos anunciados por empresas do setor, como Uber e iFood, em peças publicitárias.
"Os pontos negativos são poucos, na verdade", diz Pedro, enquanto pega capacete e câmera para sair de casa.
"O que as pessoas querem é uma forma de ganhar dinheiro. Então quando você lança um vídeo dizendo que entrega dá dinheiro e é fácil, querem ver isso", ele continua, no mesmo tom.
Pedro acopla a GoPro no capacete rosa com estampa de flores e coloca a mochila verde-limão nas costas. Explica que é melhor não ligar o app antes de trancar a porta, porque, assim que o pedido tocar, terá seis minutos para chegar ao restaurante ou será bloqueado por meia hora.
"Tem que ir logo."
O portão de ferro é fechado rapidamente e, com a mesma agilidade, o celular se encaixa no suporte e o motor começa a roncar.
Pedro acelera pelas ruas de São Paulo. São 21h de sexta-feira.
Faça seu próprio horário
Três pessoas trabalham em uma fila de computadores num escritório na zona sul de São Paulo. No canto esquerdo, há uma pequena sala de reuniões, e, nas paredes, post-its coloridos dividem as tarefas por fazer, em andamento e concluídas. Ali também estão a repórter da BBC e Marlon Luz, que apresenta parte de sua equipe. O primeiro da fila é o desenvolvedor de um aplicativo para motoristas de aplicativo, o segundo cuida de uma loja virtual com produtos voltados para esse grupo e a terceira é a secretária, que nos oferece um café em seguida.
"Açúcar?"
Marlon Luz é o maior youtuber de Uber do Brasil. Criado há quatro anos, seu canal, o Uber do Marlon, tem 532 mil inscritos. Encostado em sua mesa, enquanto os funcionários voltam a digitar — apenas três dos 11 de sua empresa —, ele lembra do seu começo na plataforma.
"A grande vantagem foi justamente o horário. Esse tipo de atividade veio bem a calhar."
Em 2015, sua mulher procurava um emprego com flexibilidade para que pudesse pegar as crianças na escola. As vagas que encontrava tinham horário fixo, o que atrapalhava seus planos.
Foi então que ela, uma ex-taxista, e o marido souberam de uma companhia chegada há pouco ao Brasil no qual os inscritos poderiam trabalhar por quanto tempo quisessem. Marlon comprou um carro para que ela começasse no serviço e decidiu testar também. Fazia corridas à noite, depois de sair do emprego como programador, para ganhar um extra.
Ao ser demitido no ano seguinte, passou a depender das corridas. Como tinha dúvidas e não encontrava respostas na internet, decidiu produzir seu próprio conteúdo.
"Tentei criar coisas que pudessem me dar um bom dinheiro e ajudar as outras pessoas, principalmente ajudar as pessoas", ele explica no escritório onde guarda amostras das mercadorias oferecidas aos parceiros - carregadores portáteis, protetores de banco e bolsinhas térmicas para água. Vinte mil unidades das últimas foram vendidas até agora, ele diz. O preço de cada uma é R$ 59,90.
O principal produto, no entanto, é o curso Motorista TOP, que oferece desde 2016 e já teve mais de quatro mil participantes. O preço das aulas não foi informado.
A ideia do treinamento, conta, é ensinar o segredo dos 15% de motoristas que faturam mais de R$ 25 por hora ou "que ganham bem", de acordo com uma pesquisa feita por ele entre seus seguidores.
"Hoje existe competição. Se você abrir seu aplicativo vai ter, no mínimo, três ou quatro carros a um minuto de distância."
Quando fala para a câmera da BBC, repete as palavras algumas vezes, para que elas saiam da forma desejada. Ao se atrapalhar, sacode a cabeça, "não está bom assim", e começa de novo, como se gravasse um dos seus vídeos.
"O que vai fazer alguém ser chamado como prioridade? Foram esses critérios que descobri."
No canal, continua, seu objetivo também é melhorar a performance dos seus seguidores. Além de sugerir estratégias, como nos vídeos "Dirigir 12h por DIA fica MUITO MELHOR desse jeito" ou "Passageiro MUITO LONGE... O que FAZER?", busca informá-los sobre elementos que possam interferir no trabalho, de mudanças na fiscalização a novas formas de transporte. Há críticas eventuais às empresas, mas no fim tudo volta ao motorista: qual é a sua tática para contornar o problema?
Em seu notebook, ele abre o vídeo mais popular, destacado na primeira página do canal: "10 Profissões que ganham MENOS que um motorista Uber", como manobrista e atendente de telemarketing. Na conta que faz, um parceiro com veículo alugado ganha entre R$ 2,1 mil e R$ 3 mil por mês.
De dentro do carro, estacionado em alguma rua de São Paulo, o Marlon das imagens olha para cima, onde está a câmera. Ele mexe as mãos para pontuar as frases, que são bem articuladas para serem didáticas.
"Olha que interessante, o manobrista também está acostumado a dirigir o carro, né? (...) Enfim, ele trabalha o dia inteiro no volante e ele ganha, em média, R$ 1,3 mil, R$ 1,4 mil por mês. Se eu fosse manobrista, eu trocaria esse trabalho por motorista de aplicativo", e dá um pequeno sorri.
É hora de deixar o escritório. Marlon nos levará ao Ponto de Apoio Motorista Top, espaço criado por ele perto do aeroporto de Congonhas, para que colaboradores de apps possam esperar por corridas e limpar o carro sem custo. Também podem fazer compras, se assim desejarem.
O trajeto dura vinte minutos. Logo o Ponto de Apoio revela-se uma garagem cujas paredes estão pintadas num padrão de cubos de gelos azuis e onde uma dezena de carros aguarda em fila. Caminhamos entre eles enquanto Marlon cumprimenta motoristas e funcionários do lugar, com tapinhas nas costas e abraços de lado. Ao fundo, há uma pequena loja.
Ali, vendem-se balas sortidas por peso — para quem quer agradar os clientes com sabores diversos -, salgadinhos e apetrechos como sachês perfumados e as populares bolsas térmicas, expostos em prateleiras.
"A bolsinha faz com que o passageiro avalie mais fortemente com cinco estrelas e perdoe uma perdida no GPS", ele explica.
A reportagem pergunta se a loja dá lucro, mas Marlon diz que ela apenas se sustenta. O que dá dinheiro, "mais do que ser um motorista de aplicativo", é o YouTube, que em razão da publicidade gera US$ 2 mil (cerca de R$ 8 mil) por mês. No total, informa depois, as empresas das quais é proprietário ou sócio geraram uma receita total de R$ 1,3 milhão em 2018. Em 2019, espera que o faturamento cresça 25%.
Ao voltarmos ao pátio, ele é abordado por um homem que se apresenta como Cleber, de camisa social verde-clara. Com o celular em mãos, Cleber pede uma selfie.
Nem bem a foto é tirada, o visitante diz que entrou no aplicativo depois de assistir a Marlon.
"Seus vídeos são muito top!", ele sorri.
Conta que há oito meses decidiu deixar o emprego como operador de empilhadeira para trabalhar apenas com os aplicativos. Com carteira assinada, ganhava R$ 1,8 mil e agora faz R$ 2,8 mil limpos.
"Ótimo! Nada bate o resultado!", Marlon responde, devolvendo o sorriso.
"E tenho horário flexível!", Cleber emenda.
O youtuber pergunta quantas horas seu seguidor dirige por dia
"Ah, 12, 18", ele responde distraído, espiando a tela do smartphone.
"Pelo amor de Deus, não faça isso não, cara", Marlon se apoia nos ombros do homem, e solta uma risada sem jeito.
Não tem problema, Cleber garante. Ele conhece os limites do seu corpo: come bem e vai para casa quando está com muito sono. As 18 horas se encaixam na sua rotina - até combinou com a namorada de vê-la a cada duas semanas, quando tira o fim de semana de folga.
Antes de chegar ao ponto de apoio, a reportagem da BBC havia perguntado a opinião de Marlon sobre a jornada dos motoristas.
"Cansa bastante", ele disse, num suspiro.
Quando perdeu o emprego, Marlon chegou a passar 80 horas por semana dentro do carro, o que era, sim, muito cansativo. No entanto, ponderou em seguida, uma jornada diária de 12 horas é viável. Ele mesmo trabalha de 14 a 15 horas entre todas as suas atividades, da loja virtual aos vídeos, passando pelas obrigações como vice-presidente da Associação de Motoristas de Aplicativo de São Paulo. Às corridas de Uber, dedica apenas quatro horas, para "manter uma ligação com seu público". Debaixo de seus olhos azuis, veem-se olheiras pretas.
A reportagem perguntou, então, se 12 horas não seria tempo demais.
"Não recomendo nenhum motorista a ficar mais do que isso", disse.
"Alguns países pedem para o aplicativo bloquear a conta do motorista depois desse período. Isso inibe a pessoa de trabalhar? Não, né. Porque ela vai para outro aplicativo. Não é uma lei muito eficiente", continuou, seu rosto coberto pela sombra do para-sol.
Doze horas lhe parecem um tempo máximo "OK".
"Mas tem pessoas que aguentam mais."
Seja seu próprio chefe
Em um dos seus vídeos, chamado "FEZ O PEDIDO E NÃO TINHA R$ PRA PAGAR E AGORA?!", o youtuber Wesley Tavares, o Tavares 160, mostra a tensão de um momento aparentemente simples: um cartão de crédito que não passa.
"Senha inválida? Não, mas a senha é essa, moço", uma mulher diz, afinando a voz, os jeans aparecendo no canto inferior da cena, ao lado do tapete de uma loja de depilação. Seu rosto está borrado.
Seguem-se outras tentativas, mas nenhuma dá certo. Se ela não conseguir pagar, o valor do pedido ficará como dívida na conta de Wesley, que precisará entrar em contato com iFood para explicar a situação.
"É, deu falha", ele diz.
A cliente pede ajuda a uma amiga, que empresta seu cartão. Um momento de expectativa antecede a mensagem: pagamento feito com sucesso.
Entregadores e motoristas de aplicativo não têm chefe. Ou pelo menos esse é um dos argumentos mais comuns na publicidade das empresas do setor e nas falas dos youtubers. Sem uma figura hierárquica, no entanto, perde-se a referência de quem procurar quando problemas aparecem. Se o pagamento falhar, quem é o responsável?
No vídeo, ao voltar para a moto, Wesley reclama da situação para seus 407 mil inscritos.
"Tipo assim, não vou saber qual é a senha dela, a maquininha tava aceitando o cartão e tava dando senha inválida. O problema não é meu, dei essa opção para ela, mas o certo é ligar para o suporte, né."
Em uma entrevista por telefone, o entregador, um dos maiores youtubers do nicho, fala mais sobre as dificuldades de comunicação.
"Alguns suportes são rápidos. Mas no iFood, por exemplo, deixa muito a desejar, demora para responder e é mais por mensagem", explica.
"Muitos descontam o valor porque o cliente falou que não recebeu. Aí é tudo por email e tem que esperar eles retornarem. De repente, deu pau no app, constou que não foi entregue, se o cliente falou que não recebeu, não sei como você faz…"
Procurado, o iFood informou que tem dois canais de atendimento: "o chat, que trata de situações mais urgentes, e o ticket, que permite que eles tratem de qualquer outro tema que não esteja relacionado ao pedido em andamento".
Essa discussão não faz muito sentido, pondera Marcio Juvino, do canal Entregador de Lanches, que tem 17,5 mil inscritos. Os motoboys nunca tiverem chefe, diz, e as empresas só incluíram essa vantagem em seus anúncios. Foi justamente isso que o atraiu.
"Quem não quer fazer sua rotina? Dá a impressão de que você tá mais livre."
Afinal, conclui, a escolha é de cada um. A sua foi não largar o trabalho com carteira assinada na área de logística e encarar as entregas como um extra. Conta que "não teve coragem" de pedir demissão, porque seria necessária alguma educação financeira para compensar as perdas de INSS, fundo de garantia e férias.
"Mas com planejamento, o cara consegue se manter tranquilo."
Ele é a favor que as empresas paguem o INSS dos parceiros, mas como isso não deve acontecer, aconselha que não deixem de contribuir para a Previdência. Aos olhos de Marcio, não dá para confiar nos aplicativos. Um dia você pode acordar e não conseguir mais logar — e o algoritmo não costuma dar explicações.
Enquanto Tavares e outros youtubers gravam seus vídeos, ficam de olho na tela do celular. Em alguns apps, os parceiros têm um tempo determinado para chegar aos restaurantes antes de o pedido passar para outros. Eles também recebem mensagens dos apps e perguntas dos clientes ao longo do dia.
"Oi, vai demorar muito?"
As falhas de comunicação parecem não valer para o lado das empresas. E não era isso que Mateus esperava.
Bombeiro civil, ele sempre trabalhou com carteira assinada e não gostava de seguir uma hierarquia ou dar explicações quando chegava atrasado.
Depois de perder o emprego, há dois anos, pensou em começar nos aplicativos. A promessa de ganhar mais dinheiro foi o que lhe convenceu. Na sua antiga vaga, o salário era de R$ 1,5 mil enquanto entregadores diziam fazer de R$ 3 mil a até R$ 8 mil por mês.
"Me seduziu", conta ao telefone.
Desde então, as coisas mudaram. O chefe está mais presente do que imaginava, mas não como gostaria. Se o cliente não aparecer para receber o produto, Mateus deve levá-lo de volta à central, sem receber nada pelos quilômetros rodados. Se reclamar, diz, pode ser bloqueado.
"É uma relação de funcionário e patrão: ou me obedece ou vai sofrer as sanções, que é o desconto ou o bloqueio."
Esta não é uma percepção individual. Professores entrevistados pela BBC News Brasil mencionam a existência de um novo tipo de chefe, sem rosto nem escritório, e que ainda exerce seu poder sobre os trabalhadores. Alguns o chamam de algoritmo.
As empresas responsáveis pelos aplicativos se apresentam como ferramentas que ligam oferta e demanda e por isso defendem não ter qualquer vínculo empregatício com seus parceiros. Mas como os parceiros disseram a reportagem, mesmo sem a figura formal de um superior, o trabalho mantém exigências.
Essa contradição será percebida com o passar do tempo, argumenta o professor de sociologia da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e membro do grupo Trabalho, Trabalhadores e Reprodução Social da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Bruno Durães.
"Nenhuma forma de trabalho fica misteriosa durante anos", diz. "Mesmo que estejamos lidando com uma realidade inovadora, vivemos uma lógica de controle nunca antes vista. Com o algoritmo, há um controle sobre todos os detalhes do trabalho."
O mistério a que Durães se refere começa a ser desvendado em outros países. Em setembro, a Assembleia Legislativa da Califórnia aprovou uma lei que obriga as empresas Uber e Lyft a contratarem seus motoristas como empregados. O texto deve entrar em vigor em janeiro de 2020.
No Brasil, a Justiça havia negado a existência de vínculo empregatício entre parceiros e aplicativos até que, em agosto do ano passado, a 15ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho, de São Paulo, a reconheceu no caso de um motorista da Uber. A relatora, desembargadora Beatriz de Oliveira Lima, afirmou que o homem não tinha verdadeira autonomia, porque precisava seguir as regras impostas pela empresa.
No entanto, em setembro deste ano, o Superior Tribunal de Justiça voltou a negar a existência de um vínculo trabalhista. Apesar de a decisão corresponder a um processo específico e não ter aplicação automática a outros, ela pode servir de precedente.
Enquanto isso, as companhias continuam sabendo tudo sobre seus colaboradores, lembra o professor Durães. O trajeto, o tempo, os desvios, a localização — detalhes a que nenhum superior jamais teve acesso. Basta que o aplicativo esteja ligado.
Ganhe pelo seu esforço
"Peraí que tão tentando ficar na minha vaga aqui, só um minuto", Mateus pede uma pausa na entrevista por telefone. Ao fundo, os barulhos do trânsito de São Paulo — buzinas, às vezes uma sirene, o ruído constante dos carros no asfalto.
"Eu já tava aqui, com licença, eu tava aqui antes…", ele diz para alguém.
A ligação é interrompida.
Quando atende o celular, vinte minutos depois, Mateus conta, a voz abafada, que se meteu numa discussão. Um motorista queria sua vaga e o ameaçou dizendo ter uma faca.
"É como eu te falei", ele continua, sem mudar o tom. "No início, a Rappi chegou no Brasil com toda essa proposta: você é seu próprio chefe, faz seu horário, e tinha vários subsídios para encher os olhos dos empregados, mas isso não se sustentou."
Os ganhos já foram bons, conta Mateus. Ele chegou a tirar R$ 3 mil por mês, quando as promoções ajudavam a complementar a taxa das entregas. Nessa época, considerou os valores pagos justos, mas com o tempo eles foram diminuindo. Hoje, consegue entre R$ 1,2 mil e R$ 1,5 mil por dez horas na rua.
Segundo ele, no ano passado, a Rappi pagava uma taxa mínima de R$ 8,90, valor que teria caído para R$ 4,20.
Questionada sobre as tarifas, a empresa não deu uma resposta objetiva, mas informou que:
"O valor do frete é calculado com base em diversas variáveis, como clima, dia da semana, horário, zona da entrega, distância percorrida e complexidade do pedido, a fim de proporcionar equilíbrio entre oferta e demanda."
Mateus demorou a perceber a queda nas tarifas, mas a certeza de que não poderia contar com os aplicativos veio rápido.
Na segunda semana de entregas, em 2017, sofreu um acidente que lhe custou R$ 2,5 mil em consertos de moto, um susto e uma mensagem automática.
Como havia atendido poucos pedidos na plataforma até então, precisou voltar a trabalhar rápido — e por mais horas — para compensar o ocorrido. Foi um mês difícil.
"Precisei comer biscoito por semanas pra economizar. Mandei um email falando do acidente, mas eles disseram que sou MEI [Microempreendedor Individual] e não tenho vínculo nenhum. Era daquelas mensagens de robô. A partir disso fui tomando consciência da relação que ia ter ali. Vi que era só eu."
Mateus não conhecia bem esse tipo de trabalho. Sempre teve carteira assinada e escreveu para a empresa na expectativa de que receberia algum amparo. Mesmo com a negativa, continuou online. Era a única opção, ele diz.
Os motoristas e entregadores entrevistados, além de membros de três grupos de WhatsApp acompanhados pela reportagem, também falam de uma diminuição das tarifas e do número de pedidos, o que levou a jornadas mais longas para ganhar o mesmo valor do começo.
"Esse negócio de ganhar dinheiro quando eu quisesse — de dia, de noite, de madrugada — foi bom no início. Hoje sou obrigado a sair todo dia, porque senão não consigo me sustentar", diz Mateus.
Isaías não recebia um pedido havia cinco dias quando a reportagem lhe telefonou. Todas as manhãs durante as duas primeiras semanas como entregador de aplicativo pedalava quatro quilômetros de sua casa até um shopping em Fortaleza, onde esperava por uma chamada, ao lado de outros ciclistas. O começo foi bom, mas depois tudo parou.
"Nos primeiros dias recebia uma média de seis, sete pedidos. Agora tô rodando e não chega nenhum. Tem outras pessoas que ficam no shopping e tão na mesma situação."
Desempregado há um ano, Isaías, de 20 anos, era auxiliar de cozinhar. Como estava difícil voltar para o mercado, seguiu o conselho de um primo e foi a uma palestra do iFood. Hoje, levanta hipóteses para entender a falta de pedidos. Acha que pode ser culpa de uma atualização do celular ou da concorrência.
"É muita gente para pouco serviço. Vejo muito entregador na cidade, principalmente de moto."
Procurado, o iFood não respondeu se há um desequilíbrio entre o número de pedidos e de parceiros disponíveis:
"A empresa esclarece ainda que o número de pedidos de cada parceiro de entrega é resultado da dinâmica do mercado local."
Com a multiplicação das mochilas verde-limão, rosas e vermelhas pelas cidades brasileiras, não é só Isaías que pensa haver gente demais nos apps. A tese é repetida por outros entrevistados:
Se mais de cinco milhões de brasileiros estão inscritos nessas plataformas, há lugar para todos?
"É…", Marlon diz do outro lado da linha, na entrevista por telefone que antecedeu a visita a seu escritório. Para ele, as plataformas não param de aceitar colaboradores porque qualquer tipo de seleção ajudaria a comprovar um vínculo empregatício entre aplicativo e parceiro.
Segundo o youtuber, a superlotação não é um problema dos apps, mas do desemprego, "o grande vilão".
"O ideal é que tivesse menos motorista, mais gente com emprego."
Entre os milhões inscritos em aplicativos, é possível distinguir alguns perfis. Há os que recorreram ao serviço por falta de alternativa, os que têm trabalho, mas desejam reforçar a renda e os que largaram o emprego para tornarem-se apenas motoristas ou entregadores.
De acordo com de uma pesquisa feita neste ano pela Fundação Instituto de Administração, escola de negócios fundada por professores do Departamento de Administração da USP, 53,8% dos 1,5 mil entregadores entrevistados não têm outra atividade profissional fora dos aplicativos. Deles, 44,3% não trabalhava com delivery antes.
"Vc é inspiração pra muita gente, eu tbm to querendo comprar minha moto minha vontade aumentou mais ainda quando vc comprou a sua, parabéns que Deus te dê muito mais coisas na sua vida e obrigado pela inspiração!!!" foi o comentário que o usuário Isaac Blitz deixou no vídeo em que Pedro Roseno anuncia sua decisão de sair do trabalho com carteira assinada para dedicar-se ao Uber Eats.
Em "Estou perdendo dinheiro", publicado há três meses, ele argumenta que o tempo gasto como funcionário de estacionamento é um desperdício, porque poderia ganhar mais se trabalhasse apenas com entregas.
Não é raro que pessoas escrevam para Pedro perguntando se também devem largar seus empregos.
No quarto-sala onde a lâmpada amarela mal ilumina seu rosto, Pedro está em silêncio, os olhos voltados para cima.
"O que você diz a elas?" é a pergunta que a reportagem acabou de fazer.
"O meu objetivo é…", ele para. "Enquanto tá dando, vou largar o emprego. Por quê? Como o meu currículo é bom, eu posso mais na frente, se não der certo, procurar outro emprego", diz, com pausas nas vírgulas, como se a lógica do pensamento seguisse o ritmo da frase.
"Mas eu não aconselho ninguém a fazer isso. Que procurem outra coisa, estudar, um emprego melhor, porque o negócio é muito incerto."
Usar os aplicativos como renda única não é a melhor alternativa, diz o professor do Insper David Kallas, especialista em Gestão Estratégica. Para ele, a conta não fecha. Se alguém que trabalha exclusivamente como motorista ou entregador colocasse seus gastos e ganhos na ponta do lápis, argumenta, dificilmente conseguiria trocar de carro.
O professor diz que os apps funcionam quando são usados como complemento de renda, por duas ou três horas por dia. Essa seria uma opção viável para o modelo de negócio.
"Mas aqui a grande entrada de pessoas é reflexo do desemprego. Elas usam o plano B como plano A."
No Brasil, continua Kallas, a necessidade une-se à dificuldade de fazer contas. A maioria dos youtubers menciona gasolina, multas e impostos, mas poucos incluem a perda de valor do carro e ninguém menciona o desgaste de quem dirige, o que pode levar a despesas com exames e remédios no futuro.
Cleber, que pediu a selfie com Marlon no ponto de apoio, saiu do emprego de R$ 1,8 mil para ganhar R$ 2,8 mil na Uber. Seu raciocínio é simples: agora tem mais dinheiro no bolso. No entanto, não citou o fundo de garantia que perdeu, além de suas férias e as contribuições previdenciárias. Fazia oito meses que trabalhava até 18 horas por dia.
"Por enquanto, está tudo certo. Meu corpo é forte", ele disse, confiante.
Marlon não desenvolve apenas estratégicas para ajudar seus inscritos, como ele mesmo tira seu sustento dessas dicas. Todos os youtubers entrevistados fazem algum dinheiro com a produção de conteúdo.
Seus ganhos costumam vir de duas fontes: a monetização dos vídeos na própria plataforma e os códigos de indicação. Motoristas e entregadores de aplicativo recebem um código que podem passar a pessoas interessadas em se cadastrar nos apps. Se essas pessoas se inscreverem e completarem um determinado número de corridas, o dono do código recebe um valor, que pode chegar a R$ 500, segundo relatos.
Não é estranho que depois do "Oi, motoras! Tudo bem?" do começo dos vídeos venha um recado como este: "e usem meu código aqui embaixo para se cadastrar!"
Um ex-youtuber de entregas, que deixou os aplicativos ao conseguir um emprego formal, diz que chegou a ter mais de R$ 70 mil para receber da Uber ao divulgar seu código em um vídeo. Gravadas em 2017, as imagens somam hoje 102 mil visualizações. O entregador diz que não recebeu o dinheiro, porque a empresa informou que a divulgação do código feriria suas regras.
Procurada, a Uber respondeu com um link para seu regulamento. Um dos itens diz o código não pode ser anunciado publicamente.
Apesar da proibição, alguns dos maiores nomes do gênero continuam a usar esse recurso. Um deles, que não quis dar entrevista e por isso não será identificado aqui, tem mais de 450 mil inscritos e anuncia seu código a cada postagem. Depois do logo de entrada do canal, escuta-se a mesma gravação: "Trabalhe como entregador no aplicativo Uber Eats. Use meu código para se cadastrar na plataforma, link na descrição".
Quando deixamos o ponto de apoio Motorista Top, já é fim de tarde. Preso no trânsito lento ao redor do aeroporto de Congonhas, Marlon fala sobre o encontro com Cleber, o rapaz que largou o emprego depois de assistir a seus vídeos.
"É muito comum eu ouvir 'virei motorista por tua causa!', esse tipo de coisa. O YouTube traz essa celebridade, mas para mim é um jeito de ter um reconhecimento do trabalho. Tu viu o olhinho daquele Cleber, né?", ele pergunta, os seus aparecendo no retrovisor, orgulhosos. "Quando a pessoa vem e tá com aquele ar de felicidade por me conhecer presencialmente é porque eu inspirei ele de alguma forma."
A reportagem questiona se Marlon se sente responsável por pessoas como Cleber.
Ele abaixa o quebra-sol para proteger os olhos da luz alaranjada que invade o carro. O motorista continua encarando a fila em frente, dezenas de veículos movendo-se em câmera lenta, quando responde que, sim, bastante, e por isso oferece o melhor conteúdo possível, para que alcancem o sucesso.
E se não der certo? a BBC insiste. Passamos em frente ao aeroporto, com táxis à espera e um entra e sai de pessoas em outros carros.
"Fico triste", ele fala, sem alterar a voz. "Mas sempre tento ajudar. Sou uma pessoa que gosta de ajudar."
Liberdade, igualdade e flexibilidade
No banner exposto em um ponto de ônibus, um homem negro abraça sua guitarra no que parece um bar vazio. Lê-se: "eu dirijo para me dedicar à música". Embaixo, um endereço: uber.com/dirija.
Liberdade, autonomia e individualidade são os principais conceitos por trás do discurso das empresas de plataforma. Em peças publicitárias, elas convidam possíveis parceiros a serem chefes de si mesmos, donos dos seus próprios horários, livres para escolher o quanto querem trabalhar, deixando tempo para outras partes da vida.
Mas não foi Uber, Rappi, iFood, 99 ou outras empresas do ramo que inventaram essas ideias.
Professores de sociologia do trabalho ouvidos pela BBC News Brasil apontam suas origens históricas, que começam na Escola Austríaca de Economia, escola de pensamento econômico desenvolvida no final do século 19. Base do pensamento neoliberal, ela introduz a ideia da pessoa como empresa de si mesmo e, portanto, independente do Estado.
"Para autores do neoliberalismo, o emprego é visto como uma prisão, porque impede que as pessoas desenvolvam suas capacidades e gerem riqueza em cima disso", diz Bruno Cardoso, professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Conceitos como esses vêm mudando a forma como trabalhamos há pelos menos 40 anos.
O ponto de mudança, explicam os entrevistados, foi o Toyotismo, um modo de produção que sucedeu o Fordismo nas fábricas a partir de 1970. Aplicado inicialmente no Japão, o sistema rompeu com a produção em massa e passou a produzir de acordo com pedidos já feitos. Dessa forma, tanto a matéria-prima quanto a mão de obra serviam às necessidades do momento.
Para isso, o Toyotismo exigia flexibilidade dos trabalhadores. Ao contrário do Fordismo, em que cada um realizava uma única função, no novo modelo o mesmo funcionário era responsável por várias tarefas. Assim, vieram também mudanças nos direitos dos empregados, com contratos de meio período, por exemplo, além de um aumento de terceirizações.
Em paralelo a essas transformações, fortaleceu-se um discurso que ligava flexibilidade à liberdade, ao poder escolher, o que era um desejos dos trabalhadores da época, como explica a professora do Departamento de Pós-Graduação do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Ana Claudia Moreira Cardoso.
"Era um pedido real por autonomia e não só dos trabalhadores. É só pensar em maio de 1968 na França. Toda a sociedade saiu à rua contra o autoritarismo, as relações verticais, contra não ter voz."
Se o Toyotismo começou nos anos 1970, no Brasil as mesmas ideias apareceram a partir de 1980 e com força em 1990, com uma resposta à queda nas vendas.
Segundo Cardoso, a novidade combinou com o posicionamento do movimento sindical, que reclamava da hierarquia na indústria.
"Foi criando-se essa concepção de que ser flexível é ter liberdade, autonomia. Flexibilidade, autonomia e participação acabaram tornando-se sinônimos, o que não era real porque ficou flexível para o empresário, que era mais forte, mas as desvantagens caíram para o lado do funcionário."
Mas como essas tendências chegaram aos aplicativos?
As mudanças nas fábricas e o avanço das máquinas, que substituíam cada vez mais gente, levaram a cortes de vagas na indústria. Sem seus empregos, ex-operários buscaram trabalho no comércio e nos serviços, num processo que ficou mais intenso a partir dos anos 2000. Nessas áreas, muita mão de obra humana ainda era necessária, porque a inovação era menor.
De acordo com os entrevistados, o que vemos hoje é uma combinação dessas modificações no mercado de trabalho com uma sociedade cada vez mais digital. A internet, como diz a professora Cardoso, passou a mediar todas as relações, da educação à paquera, então usar aplicativos para trabalhar também tornou-se natural. É só mais uma possibilidade no smartphone.
Ao oferecer essa possibilidade, as empresas de tecnologia se apropriam do discurso de que flexibilidade é igual a liberdade, inclusive para se definir não como empregadoras, mas apenas intermediárias entre alguém que demanda um serviço e outro que o oferece.
A ideia de ligar pessoas com necessidades e ofertas compatíveis não é nova. Mas ela nasceu com intenções nobres, longe de receitas bilionárias.
Um artigo publicado em 2016 pelo centro de pesquisa da Comissão Europeia, órgão que representa os interesses da União Europeia, diz que esquemas de compartilhamento de carros foram lançados pela primeira vez em Zurique, na Suíça, em 1948, pelas mãos dos cidadãos. Ideias como essa tornaram-se mais viáveis com a expansão da internet e popularizaram-se nos Estados Unidos nos anos 2000. Na época, elas ainda eram espontâneas, estabelecendo-se de pessoa para pessoa.
"Em inglês, começou com o conceito do que é meu é seu. 'Tenho esse cortador de grama, não vou usá-lo, então você pode usá-lo'. Não tinha dinheiro envolvido, era uma relação de vizinhos, amigos, conhecidos", explica Tozi.
Para o professor, as empresas teriam cooptado a noção de economia solidária e imposto uma ordem vertical a uma relação que era horizontal, entre iguais, e sempre existiu - como um vizinho que leva o outro ao aeroporto por um trocado ou uma ajuda em casa.
Assim, a "sharing economy" - a economia do compartilhamento - virou "gig economy", também conhecida como economia dos bicos.
A última teria se associado aos ideais de igualdade da primeira, mas, em vez de promover a troca direta de bens e serviços pela internet, "acabou se convertendo na oferta generalizada de trabalhos mal pagos e sem qualquer segurança previdenciária", como escreveu o economista e professor da Universidade Federal de São Paulo (USP) Ricardo Abramovay, no prefácio do livro Uberização - A Nova Onda do Trabalho Precarizado, de Tom Slee.
A cultura que nos marcou e ainda nos marca segue a seguinte lógica: estudar, se formar, trabalhar e se aposentar. No entanto, desde os anos 1970, com as transformações do Toyotismo, o modelo que conhecemos está em crise.
Para o professor de sociologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Giovanni Alves, o discurso de liberdade ajuda as pessoas a aceitar essa nova realidade.
"O discurso ajuda o sujeito a se adaptar: você não vai mais depender de uma organização, agora você pode ser empreendedor, você é o responsável. Isso casa com um anseio verdadeiro das pessoas, que querem ter liberdade."
Ter o poder da escolha, argumenta o professor, tem um grande peso num mundo em que a maioria dos trabalhadores é reprimido pelo chefe. Depois do feudalismo, das monarquias e da escravidão, foi o capitalismo que inaugurou a ideologia da liberdade, ele explica, de permitir a alguém gerir suas decisões.
"A escolha é real, porque você vai escolher entre estar no aplicativo ou num escritório. Agora, quando a realidade bate a porta? As pessoas têm uma renda, mas para isso precisam se matar de trabalhar."
As críticas dos cientistas sociais não recaem à tecnologia, mas a forma como ela é usada pelas empresas num cenário de milhões de desempregados. É inegável que a relação entre app e parceiros tem seus pontos positivos, porque eles dão oportunidades a trabalhadores não teriam outra maneira de levar dinheiro para casa, pondera o antropólogo e sociólogo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) Fred Lucio. Mas ele afirma que é preciso analisá-la com olhar crítico.
Por não arcar com custos trabalhistas, por exemplo, as empresas poderiam dar uma remuneração maior aos seus colaboradores, além de oferecer garantias, defende o professor.
"Elas ficam com um percentual grande do valor e ao mesmo tempo não oferecem nenhum tipo de seguridade social. As pessoas estão fazendo duas, três jornadas, para ter uma renda razoavelmente boa."
Mesmo que os apps tragam novidades promissoras — oferecer possibilidades de emprego e de desenvolvimento de uma nova carreira, no caso dos youtubers —, diz Lucio, não se pode ignorar que as oportunidades se dão em condições precárias, pelo menos para a maioria das pessoas. Para cada um que tem sucesso, afirma, há uma multidão "camelando".
"Tem elementos interessantes, como a criação de espaços para as pessoas mostrarem seus dotes, mas os aplicativos usam dessa lógica para ganhar em cima de uma massa que procura alternativas para sair da crise."
Isso não significa que é preciso demonizar a tecnologia e as empresas. O cenário digital, afirma o antropólogo, chegou para ficar, mas é preciso entender como estabelecer relações de trabalho justas dentro dele e fazer pressão — a partir do Estado e de entidades da sociedade civil — para que elas sejam postas em prática.
Cada um com a sua culpa
VOCÊ ESTÁ TRABALHANDO DE FORMA ERRADA NA UBER 99POP
Se você faz isso, pare AGORA, antes que seja tarde demais!
Uber dá certo só depende de você.
Janeiro fraco? Só pros fraco !!! #motorista #uber #manaus
As frases acima são títulos de vídeos encontrados em uma busca rápida no YouTube. Além da ideia de autonomia, explicada acima, elas vendem algo mais: a culpa.
Muito do conteúdo exibido online responsabiliza as pessoas por seu fracasso. Os vídeos listados, por exemplo, culpam os motoristas por não trabalharem mais, por não agradarem todos os clientes, por não conhecerem as plataformas a ponto de evitar tarifas maiores e até por não usarem roupa social, o que atrairia passageiros mais pobres e mal-educados.
"E eu te garanto, se você está cometendo um desses cinco erros que eu vou falar nesse vídeo, você está rasgando dinheiro ao sair pra rua", diz um dos youtubers, apontando para a câmera de dentro do carrro, enquanto uma melodia de reggae toca ao fundo.
Outros fatores, como a política das plataformas e a própria situação do país, não são considerados com cuidado. No fim, tudo depende do motorista.
"As pessoas não pensam que alguns problemas devem ser resolvidos coletivamente. A própria lógica dos aplicativos coloca os trabalhadores como concorrentes, porque quanto mais entregador tiver, menos corridas cada um vai fazer", diz o professor Bruno Cardoso, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Nessa linha de raciocínio, tudo seria individual, das possibilidades de fracasso às chances de sucesso. Seria algo como: "eu nunca vou sofrer um acidente, mas sou eu que vou ficar rico!".
Isso faz parte de uma ideologia contraditória, diz Giovanni Alves. A liberdade do trabalhador, explica, é real, porque em tese ele pode fazer suas escolhas, mas, dadas as condições — desemprego, falta de alternativas, um discurso que pode iludir —, ela não existe. Além disso, ela prometeria autonomia e felicidade ao mesmo tempo em que conduziria os trabalhadores para vagas cada vez mais precárias.
Professor de sociologia do trabalho da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e um dos maiores nomes do Brasil na área, Ricardo Antunes descreve o momento atual como a volta de formas primitivas de trabalho.
"O trabalho desregulamentado não é novo, as mulheres trabalhavam 16 horas por dia na revolução industrial, mas agora isso vem com a tecnologia do mundo digital."
O momento que vivemos, Antunes argumenta, tem semelhanças com as primeiras formas do capitalismo, como a exploração de operários na Inglaterra, mas exibe uma nova roupagem.
Parte desse embrulho moderno estaria no vocabulário. Antunes diz que palavras como "metas", "colaboradores" e "parceiros" seriam rótulos que ocultam seu verdadeiro significado. Um parceiro, afirma, não tem os mesmos direitos e proteções de um funcionário. Mas também não é amigo do dono da empresa, como o nome pode sugerir.
"Esses professores, especialistas entre aspas, não concordo com eles, porque veem de fora. Analisar o trabalho dos outros é fácil", diz Marcio Juvino, o Entregador de Lanches, ao telefone.
Ele aceita a visão dos "especialistas' em alguns pontos. Sim, o trabalho não é fácil e há muitos riscos, mas essa é a tendência do mercado daqui para frente, Marcio responde. Seu argumento acaba em um lugar familiar: "ninguém é obrigado a fazer, faz quem quer".
"Não desisti, voltando às entregas" é o título do vídeo que Marcio publicou há três meses no seu canal, que tem 17 mil seguidores.
"Fala aí, rapaziada! Sejam bem-vindos a mais um vídeo no canal. Eu sou o Entregador de Lanches, manos. Tô voltando depois de tanto tempo e vou explicar o que aconteceu."
Em "Não Desisti", ele conta que um episódio de depressão o fez dar uma pausa das plataformas, que complementam seu salário.
"Com a obra, o trabalho, eu saturei, sabe? O negócio foi tão pesado que eu sinceramente não sei o que ocasionou. Teve um gatilho, claro, mas...é normal, é o estresse do dia a dia."
Ele fala enquanto desvia dos carros num engarrafamento em São Paulo, guidão movendo-se de um lado para o outro para seguir no corredor estreito entre as luzes de freio.
No final, diz que está feliz por voltar. Fez duas entregas naquela noite, cada uma de R$ 10.
"Tem muito nego nos grupos de Facebook, (falando) que os caras estão desvalorizando a categoria dos motoboys, fazendo entrega de R$ 5, mas, mano, fazendo entrega de R$ 5 foi que consegui chegar ao meu maior objetivo", ele diz, se referindo a construção da sua casa, enquanto a câmera mostra as ruas de São Paulo, luzes e engarrafamento, à noite.
Um país de informais
Em seu carro, estacionado no Ponto de Apoio Motorista Top, Cleber tem uma loja. Ele estica o braço direito, amassando a camisa azul-claro, para alcançar o porta-luvas. Dali, tira pequenos frascos de vidro. São os perfumes que oferece a seus passageiros, caso perguntem por que ele cheira tão bem, conta, ao mostrar as embalagens. Não há nada no regulamento da Uber que impeça venda de produtos.
"Cada um é R$ 36. Mostro para o pessoal com mais dinheiro, da Bela Cintra, do Centro, (em São Paulo)."
O Brasil tem um histórico de informalidade que faz com que o trabalho por aplicativo não pareça tão estranho, dizem os professores entrevistados pela BBC News Brasil.
Filhos e netos de empregadas domésticas, vendedores ambulantes, camelôs, feirantes e outras categorias tão comuns no país, o motorista ou entregador, principalmente se de classes mais baixas, acharia natural não ter um vínculo formal com a empresa e ganhar pelo seu esforço. Muitas vezes, ponderam os especialistas, eles até preferem assim.
O gosto do brasileiro pelo trabalho informal têm suas origens na escravidão. Os "bicos" foram a primeira amostra de liberdade para os negros.
O professor de Sociologia da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) Bruno Durães conta sobre a categoria dos escravos de ganho, que ficavam nas casas dos senhores ou nas cidades, e eram postos para trabalhar na rua. Poupados das atividades pesadas dos engenhos, muitos deles conseguiam, a partir de pequenas vendas e serviços feitos em paralelo às ordens dos seus donos, guardar dinheiro para comprar sua liberdade.
"A condição escrava era a destruição do ser humano. Mas, ao mesmo tempo em que era a destruição, o trabalho permitia, na rua, que o escravo alcançasse autonomia por meio do seu esforço."
Assim, diz Durães, na cabeça dos brasileiros, a informalidade e o "seja seu próprio chefe" estão ligados a uma tradição de liberdade e resistência.
Em um artigo publicado na Revista Brasileira de História e Ciências Sociais, o pesquisador escreve como a partir de 1870, com a crise do regime escravista, as ruas de Salvador passaram a ser um lugar de liberdade para os ex-escravos.
"Em certa medida, passam a trabalhar por si e para si, (a) realizar-se no trabalho. (...) Agora o trabalhador se apropria diretamente do produto do seu trabalho, sem a figura de um ser estranho para lhe tomar os produtos e comandar seu processo produtivo."
A abolição não significou o fim do trabalho precário por aqui.
Para Vera Lucia Navarro, professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da USP, apenas a forma de exploração mudou, da chibata para o cronômetro. No começo do processo de industrialização no Brasil, explica, homens e mulheres chegavam a trabalhar 17 horas seguidas nas fábricas.
"Os industriais carregavam consigo a mentalidade escravocrata, de casa grande e senzala. E ela ainda não foi extinta, como vimos há pouco tempo, com a dificuldade de garantir os mínimos direitos para as domésticas."
Somado aos altos índices de desemprego, esse histórico formaria o cenário ideal para empresas como Uber, Rappi, iFood e 99 crescerem no Brasil hoje, dizem os entrevistados.
As plataformas não costumam divulgar o número de entregadores ou motoristas ativos, ou se esse grupo se multiplicou, mas a colombiana Rappi, por exemplo, que começou a operar no país em julho de 2017, informa que suas entregas crescem 30% ao mês.
"No final, as empresas ganham duplamente: na falta de tradição de direitos do Brasil - pagam qualquer valor e é isso mesmo -, e no discurso que mexe com o orgulho do povo", diz Durães.
Cansaço
Mateus se sente como um fantasma. Ele, que não dá seu nome nesta reportagem, perde a identidade quando faz entregas. Torna-se mais um colaborador de jaqueta e mochila colorida nas costas, das dezenas que encontra por dia nas ruas de São Paulo.
"Acontece um processo de despersonificação. Não veem a gente como humano, mas como bichos, escravos, principalmente os restaurantes."
Ele dá exemplos. Mesmo sob chuva forte, precisa esperar do lado de fora pelos pacotes de comida; copos d'água são frequentemente negados e o uso do banheiro, proibido; há um olhar constante de desconfiança - "não vai furtar os lanches, viu".
Ser entregador o levou a enxergar as coisas com outros olhos. Não de desconfiança, mas de desgosto. Lembra-se de quando era bombeiro em shoppings ou bancos, da "aura de salvador" que o uniforme lhe emprestava e do consequente respeito que inspirava nas pessoas. A mochila de motoboy não tem o mesmo efeito.
"Estou numa posição subserviente e vi um lado do ser humano que não via antes. Já peguei sobrenome dos (clientes) que me tratam mal, vou pesquisar no Facebook e são pessoas que apoiam causas sociais, esquerdistas, mas que tratam mal o empregado. É um discurso hipócrita."
Mudou a forma como os outros tratam Mateus e também como ele trata a si mesmo, "sem muita dignidade", nas suas palavras. Como trabalha de dez a doze horas por dia, o pouco tempo que tem fora da cama não é suficiente para preparar almoço, jantar ou fazer qualquer outra coisa.
A falta de um horário regular para comer - os horários das refeições são os de maior demanda no aplicativo - o fez passar de 74 kg para 65 kg nos últimos dois anos. Essas não foram as únicas transformações que notou em seu corpo.
"Sou outra pessoa. Tinha uma pele mais limpa e agora meu poros são dilatados, sou queimado de sol e meu cabelo cai por causa do estresse."
Eram 16h quando Mateus atendeu a reportagem e ele ainda não havia almoçado. Na rua desde as 8h, esperava o restaurante do Bom Prato, programa de assistência social do governo de São Paulo, abrir para jantar. É que lá a comida custa R$ 1, explicou.
As empresas
Não há uma entidade que represente os interesses de todas as empresas de plataforma, mas parte delas, como Loggi, iFood e 99, está reunida na Associação Brasileira de Online to Offline (ABO2O).
A reportagem procurou a associação para entender a visão dessas companhias sobre os assuntos discutidos acima, principalmente sobre o confronto entre o discurso divulgado por elas e a realidade de trabalho dos parceiros.
Diretor de Engajamento da ABO2O, Marcos Carvalho disse que está acontecendo "uma verdadeira revolução" na forma como as pessoas se relacionam com o ambiente, não existindo mais uma diferença tão grande entre os mundos físico e digital.
"É uma quebra de paradigma. O indivíduo tem uma nova forma de se relacionar e isso se aplica também ao sistema de prestação de serviço."
Para ele, criada nos anos 1940, a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) é antiquada e precisa ser adaptada para uma forma de contratação do século 21.
No seu formato atual, mesmo com as modificações feitas pela reforma trabalhista de 2017, ela sobrecarregaria os empresários de regulações e burocracias que travam os negócios.
"É muito retrógrado, emperrando o serviço."
As limitações estariam também do lado do colaborador, que ao ter registro na carteira de trabalho não desfruta da mesma liberdade oferecida pelos aplicativos. As plataformas dariam a ele a possibilidade de se dedicar mais e ganhar mais, de acordo com seus objetivos de vida. Fazer uma jornada maior por desejo de "escalar a classe social" é algo "normal e comum do ser humano", explica Carvalho.
"Quero trabalhar mais para comprar um imóvel ou menos, porque quero o básico, cada um tem suas ambições."
Ele cita outros dados da pesquisa sobre entregadores feita pela Fundação Instituto de Administração (FIA) entre fevereiro e março deste ano: 74,6% disseram que não obrigados pelo aplicativo a realizar entregas e 87% aumentaram seus ganhos com os apps.
Outros 72,7% têm neste serviço sua principal fonte de renda. Isso, para Marcos, mostraria a importância das plataformas neste momento do Brasil.
"São 13 milhões de desempregados. Se pegar o contingente de motoristas e entregadores, são 5,5 milhões. Olha o benefício que estão trazendo para o país."
Questionamentos a essa linha de raciocínio, no entanto, são feitas até mesmo por representantes do empresariado. O diretor geral do Instituto Capitalismo Consciente Brasil, Hugo Bethlem, acredita que as empresas de plataforma deveriam ser mais cuidadosas ao lidar com seus colaboradores.
Ele concorda com Carvalho sobre as possibilidades que a tecnologia trouxe para os desempregados, mas considera que uma gestão mais consciente é necessária.
"Quanto mais horas eu trabalhar, mais dinheiro eu ganho, mas qual é o limite do stress? Esses bônus por entrega só olham para o entregador-empresa, não pessoa física, e põem em risco a saúde dessas pessoas."
Bethlem diz considerar os dois lados da moeda: num deles, é "super-apoiador" da economia compartilhada e prega a livre iniciativa sem intervenção do Estado; no outro, acredita que não pode haver uma pressão tão grande da empresa sobre o entregador, o que afetaria a qualidade do serviço.
Sua recomendação para o setor seria: ganhar menos para ganhar sempre.
Tais mudanças devem ser feitas pela iniciativa privada, enfatiza Bethlem, e não passar pelo poder público. Quando iFood e Loggi fecharam um acordo com a Prefeitura de São Paulo, por exemplo, para acabar com os bônus por entrega, se submeteram a uma situação desnecessária, que poderiam ter evitado se alterassem suas regras por conta própria.
"Tem que falar 'vem trabalhar comigo, porque você não vai ganhar bônus por velocidade, mas porque foi cordial'. É preciso achar outro sistema."
A relação entre empresa e prestador de serviço deveria ser mais humanizada, ele argumenta.
A BBC News Brasil procurou todas as empresas citadas pelos entrevistados (99, Uber, Uber Eats, Rappi e iFood), questionando, entre outros pontos, se elas levam em consideração a realidade de alto desemprego do Brasil e a busca dos apps como forma de sobrevivência em suas decisões. A pergunta feita foi: num contexto em que milhares de brasileiros dependem das entregas para pagar o aluguel podemos falar em "livre escolha"?
A maioria delas respondeu que oferece uma saída aos desempregados que, sem os aplicativos, não teriam outras opções.
Uber e Uber Eats disseram que "os entregadores parceiros são independentes, escolhem como e quando utilizarão o aplicativo como geração de renda". Também informaram que "no Brasil, 80% dos entregadores parceiros ativos no Uber Eats passam menos de 20 horas da semana online".
A 99 respondeu que sua "missão é fornecer oportunidades de geração de receitas para os motoristas e suas famílias. Por isso, mais de 600 mil condutores escolheram o aplicativo como principal forma de ganhar a vida ou como complemento de renda, em 1,6 mil cidades do país."
A Rappi informou, em nota, que entende a situação de desemprego no Brasil é "complexa" e "depende de inúmeros fatores externos" à companhia.
"Porém, acreditamos que, ao oferecer às pessoas a possibilidade de fazer entregas por meio da plataforma, contribuímos para que possam ganhar algum tipo de renda diante desta situação."
O iFood afirmou que gera oportunidade para cerca de 120 mil entregadores independentes que já utilizaram a plataforma: "esse número é ainda mais importante se pensarmos no cenário brasileiro do desemprego, que abrange mais de 13 milhões de pessoas".
Trabalhadores unidos?
Neste momento, há 781 mensagens não lidas nos três grupos de WhatsApp de entregadores nos quais a BBC News Brasil entrou. Eles reúnem 523 pessoas, principalmente de São Paulo.
Com exceção de eventuais vendas de capacetes e mochilas, as trocas são basicamente perguntas:
Já aconteceu com vocês? O que fazer? Onde fica? Quanto custa? Do que preciso para…?
De alguma forma, os motoristas e entregadores encontram maneiras para se organizar, dizem os professores entrevistados.
Mesmo que os sindicatos sejam chamados por eles de corruptos, antiquados ou atrasados, é inevitável que surjam novos modelos de organização, afirmam. Mesmo que esses não sejam muito eficazes.
O professor do Departamento de Geografia do Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Fábio Tozi cita as organizações de motoristas de Uber, que, para ele, apresenta uma pauta pulverizada e costumam defender a empresa. A mais importante delas é a Associação de Motoristas de Aplicativo de São Paulo (Amasp), que tem Marlon Luz como vice-presidente.
Em posts recentes, a associação cobrou as autoridades pelas mortes de cinco motoristas na região metropolitana da cidade. As cobranças às empresas, no entanto, foram bem mais discretas.
"Mais um assassinato de um motorista de aplicativo...Mais um caso fora dos apps...O nosso presidente Duda já vem alertando inclusive foi o tema dele na Alesp, que não adianta os apps elaborarem métodos de segurança sem que o governo também faça a parte dele, continuaremos reféns dos marginais!!!", diz uma postagem feita na página de Facebook da Amasp no dia 2 de outubro.
Para Tozi, que estuda como os aplicativos de transporte mudam questões sociais e o planejamento das cidades, entidades como essa querem mais segurança para os motoristas, mas sem bater de frente com as plataformas.
Procurada, a Amasp respondeu, em nota, que foi a primeira associação a conseguir reuniões com todos os aplicativos pedindo reajuste de tarifas e mais segurança, em 2017.
"Todos os apps responderam que iriam analisar e pouco tempo depois a Uber e a 99 reajustaram tarifas em algumas cidades do Brasil, lugares pontuais, e também firmaram parcerias para reduzir os custos dos motoristas."
Outra ação teria sido processar as empresas quando motoristas foram excluídos de forma considerada inválida. No entanto, continuou a associação no comunicado, muitas vezes o "bom relacionamento" com os aplicativos permitiu que um processo não fosse necessário para religar o motorista.
A Amasp também lembrou que "corre atrás de resultados", ao contrário dos sindicatos, que ficariam "apenas gritando ao vento."
As mesmas críticas feitas às associações, diz Tozi, valem para a maioria dos youtubers deste nicho. Eles teriam uma relação de subordinação com as empresas, que começaria com a pressão do algoritmo durante as corridas e acabaria na tela do computador, com a repetição de discursos divulgados por Uber, 99, iFood e Rappi.
Há algum sinal de conscientização entre os motoristas, pondera Bruno Cardoso, professor da UFRJ. Em maio, por exemplo, milhares de parceiros da Uber no Brasil pararam por 24 horas em adesão a uma greve mundial.
No entanto, ele concorda que os youtubers são obstáculos ao desenvolvimento de um olhar mais crítico, porque além de repetirem o discurso das empresas, mostram como estão ganhando muito dinheiro ao segui-lo.
"Não é o motorista comum, que dirige doze horas por dia, que tem um canal grande, porque canal exige edição de vídeo, capacidade de gravar e tudo isso é tempo. Assim, quem tem visibilidade já é bem sucedido."
Como formadores de opinião, afirma, eles não oferecem um espaço de debate para colegas que tiveram uma experiência ruim com as plataformas. Ao contrário, suas falas reforçariam seu sucesso e culpariam seus inscritos pelo próprio fracasso.
"Aí não é a estrutura que leva as pessoas a enlouquecerem, adoecerem ou ficarem pobres, são elas que são preguiçosas."
Após ouvir a opinião de Tozi, Marlon Luz diz ao telefone que ele deveria dirigir um pouco para ter uma visão mais realista. O youtuber argumenta que chegou a encontrar, em grupos de WhatsApp, motoristas que ganham até R$ 400 por dia.
"Reflete a realidade da maioria?", ele pergunta do outro lado da linha. "Não. Mas a gente ensina como chegar lá."
Além disso, continua, há youtubers que trabalham 12 horas e ainda gravam seus vídeos, apesar de esses não serem os mais conhecidos. Marlon admite que o desemprego é um problema e que nem todo mundo está feliz em ser colaborador de aplicativo, mas pondera que os ganhos compensam.
"Trabalhando o mesmo tempo, o motorista ganha pelo menos o dobro do salário mínimo."
Nos vídeos, no entanto, ainda há muitas promessas que não se concretizam. Em alguns deles, motoboys mostram extratos de R$ 5 mil, às vezes não revelando quantos quilômetros rodaram para acumular o valor.
Então há quem chegue com a ilusão de que vai ganhar muito dinheiro, diz Mateus, o ex-bombeiro. Assim, fica difícil dividir críticas com outros entregadores, porque a mentalidade do "só depende de você" faz a competição entre eles aumentar. Muitos não querem ouvi-lo, acreditando que ele se queixa para desanimar os concorrentes.
Ao fim da entrevista, Mateus diz que a falta de diálogo não o incomoda mais. Seu tom tem algo de ironia ou indiferença.
"Eles não enxergam que podem ter uma série de problemas de coluna, de respiração, e tudo isso vai ser cobrado. É questão de tempo."
Os professores entrevistados se dividem sobre as possíveis reações desses motoristas e entregadores no futuro. A maioria faz a mesma ponderação: sim, a realidade é dura e eles irão percebê-la logo, mas parte desses brasileiros depende dos aplicativos para sobreviver. Se não há opções, o que fazer?
Há um limite, defende Ricardo Antunes, da Unicamp. Quem está desesperado aceita regimes menos garantidos, mas num dado momento as taxas baixas, as jornadas longas, a desvalorização vinda da empresa e dos clientes será tão forte que não vai segurar uma resposta.
"Que sociedade consegue manter tantos milhões de desempregados? São muitas contradições para você controlar e as tensões normalmente transbordam o espaço do trabalho, se esparramam para as periferias, para os lugares onde os trabalhadores moram."
Isso sem falar nos limites físicos. O ideário das empresas, argumenta o professor, "viram pó", quando o colaborador percebe que só ele está ralando todos os dias.
"É (dar) o tempo das depressões, do acidente, da morte, da infelicidade, da resistência, da organização e da busca por uma alternativa."
Neste momento, há 16 mensagens não lidas nos três grupos de WhatsApp. Ao entrar nas conversas e buscar por "protesto", encontra-se a seguinte conversa, no dia 26 de julho:
Winchester diz:
"Meu primo foi atropelado tá com a perna quebrada"
"A empresa uber eats diz Q o erro foi dele como não tem prova de filmagem"
"A uber dis Q ele não prestou atenção"
"Então a cupa não é do motorista mas sim dele"
E Daniel responde:
"E pior que querem a prova na mesa"
(...)
Winchester termina o assunto:
"Tem Q ter um protesto sobre nossos direitos."
Os que estão esgotados devem sair e outros irão substituí-los. O cenário é desenhado pelo professor Fábio Tozi para os motoristas e entregadores de aplicativo, caso o desemprego não caia.
"Os motoristas que a gente acompanha (na nossa pesquisa) pretendem sair assim que possam, porque se torna insuportável."
Os substitutos tendem a ser pessoas mais jovens, saudáveis e entusiasmadas, que acabaram de começar nesse tipo de atividade, acrescenta Bruno Cardoso, da UFRJ. À medida que fica cada vez mais fácil entrar nesse mercado, especialmente no de entregadores em que nem motos mais são necessárias, explica, forma-se um exército de candidatos aptos a iniciar o serviço a qualquer momento.
Com entregas de bicicleta e até a pé, a única coisa de que precisam são pernas e um celular com internet.
Para além do esgotamento físico, motoristas e entregadores enfrentarão no futuro o desaparecimento de suas vagas.
Em junho, a Uber informou que iria começar a testar um sistema de entrega de comida com drones e apresentou um protótipo de veículo autônomo, capaz de ser completamente independente. Segundo a companhia, por motivos logísticos, os drones não fariam as entregas diretamente aos clientes, mas deixariam o pedido em um ponto de coleta para que o entregador completasse o pedido.
"A empresa que em dez anos tornou-se uma das mais poderosas do mundo explorando o trabalho humano já sonha com um futuro sem trabalho humano. Você imagina?", questiona Ricardo Antune.
Não é só uma percepção. Um estudo feito pelo Laboratório de Aprendizado de Máquina em Finanças e Organizações da Universidade de Brasília (UnB) mostrou que as máquinas movidas por tecnologia de inteligência artificial devem, até 2016, ocupar 54% dos empregos formais do país. A porcentagem representa cerca de 30 milhões de vagas.
Os youtubers já pensam nesse cenário. Eles não encaram os aplicativos como algo que vá durar "o resto da vida".
"É uma profissão sem futuro", define Marlon.
Há dois principais motivos para esse fim anunciado, ele enumera: não há progressão de carreira — um motorista será sempre um motorista — e os carros que se dirigem sozinhos já são uma realidade.
"Não é questão de se vai existir, mas de quando. Realmente, não tem futuro."
Quando Pedro sai de casa, celular no suporte da moto e mochila nas costas, a reportagem o segue de carro. É preciso ficar atento porque mochilas coloridas se juntam a ele nos semáforos, misturando os tons gritantes dos tecidos com o amarelo e vermelho das luzes de freio e dos postes.
"Tem muita gente que reclama de barriga cheia", foi sua conclusão depois de quase duas horas de entrevista. Não dá para criticar as empresas, explicou, porque são elas que dão o dinheiro. Meses depois desta conversa, ele cumpriu o prometido e pediu demissão do emprego.
"Se tem um aplicativo que tá te pagando, e a pessoa fala que não tem onde trabalhar, tá reclamando de barriga cheia, assim, no sentido figurado", disse, antes de fechar a porta.
Quando Pedro sai de casa, não tem tempo de comer. Na pia, seguem os restos de arroz e feijão.
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