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App ajuda pessoas com deficiência visual a usarem o computador

Fernando Botelho é deficiente visual e fundador da empresa F123 Consultoria
Fernando Botelho é deficiente visual e fundador da empresa F123 Consultoria Divulgação

Um aplicativo gratuito está melhorando a vida de milhares de deficientes visuais que utilizam computadores e outros dispositivos tecnológicos, como smartphones e tablets. Produzido pela empresa F123 Consultoria, um sintetizador de voz, batizado de Letícia, reproduz uma voz feminina em português e pode ser usado em praticamente todos os tipos de leitores de tela e sistemas operacionais de tecnologia assistiva.

Para fazer uso de um computador, o deficiente visual utiliza o chamado leitor de tela, um programa que converte o texto exibido em tela em um discurso sintetizado em voz, permitindo que o usuário navegue na internet ou use qualquer software ouvindo o que está escrito no monitor e usando comandos no teclado para executar qualquer tipo de operação. Cada leitor de tela possui um sintetizador de voz associado, e é justamente essa nova opção de voz que foi criada pela F123. O projeto foi um dos primeiros, no Brasil, a serem patrocinados pela Expo Dubai 2020, evento que reunirá milhões de pessoas no ano que vem para celebrar conquistas humanas, sob o tema “Conectando Mentes, Criando o Futuro”.

"A gente queria uma voz que fosse de boa qualidade, que não fosse muito robótica, como são as principais vozes disponíveis em português, e que funcionasse em diferentes plataformas, já que a maioria funciona apenas no sistema Windows ou apenas no [sistema operacional] Android e por aí vai. A nossa voz pode ser disponibilizada em várias plataformas e sistemas operacionais, como Windows, Linux e Android", explica Fernando Botelho, fundador da F123 e um dos criadores da voz Letícia.

Botelho é deficiente visual e fundou a F123, há 12 anos, com o objetivo de desenvolver tecnologias que ajudem a dar mais competitividade às pessoas cegas, nas mais diversas áreas de atuação. A empresa se enquadra no conceito de negócio social, no qual são utilizadas técnicas modernas com missão social ou ambiental e todo o lucro é reinvestido na própria causa. "A gente viu a chamada que a Expo fez. Eles estavam em busca de projetos sociais e ambientais, e fomos o primeiro projeto brasileiro a receber apoio".

Escolha do nome

Com os recursos da Expo Dubai, o projeto começou a ser colocado em prática há cerca de dois anos. Um concurso nacional elegeu a voz que serviria de base para a formatação do sintetizador Letícia. A escolha, que contou com a participação de milhares de pessoas em todo o país, se deu por meio de uma votação pública na internet, e chegou ao nome da cantora, compositora e atriz Sara Bentes, que também é deficiente visual.

"Foram mais de 30 horas de gravação em estúdio. Foram lidas mais de 3.300 frases, que têm que ser foneticamente balanceadas, já que o sintetizador precisa ser treinado em uma diversidade fonética grande, para que possa ser capaz de construir qualquer frase em português", explica Fernando Botelho.

Tecnicamente, a voz de Sara não é a mesma de Letícia, por se tratar de um programa de computador, mas o nome foi inspirado na própria artista. Sara Bentes é, na verdade, Sara Letícia Bentes. O nome do meio, que não é o nome de trabalho utilizado por Sara, serviu como uma homenagem à cantora e, ao mesmo tempo, serve para distinguir o sintetizador da voz original usada como base.

Vantagens

Segundo os fabricantes, o sintetizador de voz Letícia tem a capacidade de ajudar mais de 500 mil pessoas dentro e fora do Brasil. A versatilidade da tecnologia é uma das principais características apontadas pelos usuários que aprovam o aplicativo. É o caso do programador Ângelo Beck, que chegou a participar da equipe de testadores do software. Atualmente, ele utiliza a Letícia em um dos dos seus notebooks e também no celular. 

"No celular, eu estou gostando demais porque, além das mensagens de textos, o aplicativo lê aquelas figurinhas emojis. É a única voz que faz isso no Brasil a contento. Antes, eu recebia mensagens com aquelas figurinhas e as vozes simplesmente não liam. Eu sabia que tinha uma mensagem ali, no caso, um emoji, mas as vozes não liam. E a voz da Letícia é a primeira que conheço que faz a leitura desses emojis, então isso já mudou totalmente a minha comunicação, porque agora eu mesmo posso escolher as figurinhas e mandar para as pessoas", relata.

Além de ser uma voz com característica mais humanizada e menos robótica, o sintetizador Letícia funciona bem em praticamente qualquer dispositivo e em todos os sistemas operacionais. "Eles conseguiram criar uma voz rodar tanto num computador mais moderno quanto num celular mais antigo", afirma Ângelo Beck.

Deficiente visual desde os 21 anos, por causa do agravamento de um glaucoma congênito, Ângelo Beck tem hoje 38 anos e utiliza a voz Letícia para desenvolver uma de seus principais atividades além da programação. Ele é artista e faz móveis infantis em miniatura desenhando a partir do próprio computador, utilizando vetores em um software específico. Os trabalhos são depois impressos em dispositivos a laser e Ângelo monta peça por peça para criar cada um dos móveis, como guarda-roupas, poltronas e mesas, que encantam principalmente as crianças, mas são capazes de encher os olhos de qualquer adulto pela qualidade e delicadeza do resultado.

“Eu uso a minha criatividade para desenhar e tento imaginar o móvel pronto. As crianças gostam muito e é recompensador transformar os meus desenhos em realidade”, conta.

Novas vozes

Na F123, o próximo desafio é criar novos sintetizadores de voz, inclusive uma voz infantil para auxiliar no desenvolvimento de crianças cegas. Segundo Fernando Botelho, também está nos planos o desenvolvimento de aplicativos em outros idiomas, principalmente de regiões mais esquecidas pelo resto do mundo.

"Estamos conversando com potenciais apoiadores para fazer novas vozes em outros idiomas. Existem muitos idiomas pelo mundo afora que não têm bons sintetizadores. É uma tecnologia bastante complexa e muitas empresas não estão interessadas em desenvolver esse aplicativo em idiomas que só são falados em países da África, por exemplo".

Tecnologia (não) inclusivas

Apesar de invenções como a Letícia sinalizarem um avanço na qualidade de vida e na igualdade de oportunidades para deficientes visuais, a realidade dessas pessoas, em um mundo cada vez mais tecnológico, não é fácil. O programador Ãngelo Beck explica, por exemplo, como passou a ser mais difícil operar uma simples máquina de lavar roupas ou um aparelho microondas. "Hoje em dia, não encontro mais uma máquina com controle simples, que você pode girar e definir a escolha. No caso dos microondas, costumam tem um painel livre, sem auto-relevo".

Até mesmo um caixa eletrônico, sob o argumento de ser mais tecnológico, passou a não incluir mais pessoas com deficiência visual. "Antigamente, rodava uma gravação em áudio, tipo 'digite sua senha', mas hoje em dia tem uma tela de LCD e não consigo operar o caixa porque ele não tem sintetizador de voz. Não é falta de tecnologia disponível, é falta de pensar um produto levando em consideração um desenho universal, acessível", critica.



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