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Gripe espanhola: a besta fera que atacou o mundo em 1918

Hospital militar de Emergência em Kansas (EUA) em 1918, durante a pandemia
Hospital militar de Emergência em Kansas (EUA) em 1918, durante a pandemia Domínio público

Os canhões ainda estavam embuçados pela fumaça no fim da 1ª Grande Guerra quando o mundo começou a enfrentar um novo, silencioso, e invisível inimigo: a chamada Gripe Espanhola, o maior holocausto médico da história a humanidade. A praga apareceu pela primeira vez em fevereiro de 1918 na cidade de San Sebastián, movimentado ponto turístico da costa setentrional da Espanha. Foi considerada uma gripe banal e logo esquecida. A região desfrutava de um clima agradável e ameno, onde podiam ser esquecidos os horrores das trincheiras da França, do outro lado da fronteira, cenário de destruição e desgraças, onde os Aliados lutavam desde 1914 contra os alemães e os países que apoiavam o Kaiser Guilherme II.

A Espanha era uma nação neutra, não se envolvera na guerra iniciada contra a Sérvia quatro anos atrás, após o assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono da Áustria. Ferdinando tinha sido abatido a tiros, em Sarajevo, junto com sua mulher por um nacionalista iugoslavo. Na ensolarada San Sebastián era possível encontrar-se momentos de paz, longe não só do estrugir dos canhões como dos efeitos do gás mostarda que produzia uma névoa esverdeada letal, a mais nova arma de guerra alemã.

De repente, a gripe chegou. Não foi nada alarmante, apenas dois ou três dias de febre, seguidos de ligeiro mal-estar. No início, o vírus parecia escolher suas vítimas, atacava preferencialmente adultos jovens, poupando velhos e crianças, ao contrário do que acontece atualmente com o Coronavírus.  Estudos recentes sustentam que os idosos não foram contaminados pelo vírus por terem adquirido resistência imunológica durante a pandemia ocorrida entre 1889 e 1890, conhecida como a "Gripe Russa".

Soldados que combateram na Primeira Guerra Mundial, durante a gripe espanhola
Soldados que combateram na Primeira Guerra Mundial, durante a gripe espanhola Wikimedia Commons

Em março de 1918, soldados americanos que passavam por San Sebastián a caminho do front começaram a adoecer. Dois meses depois, o Rei Afonso XIII e oito milhões de súditos também estavam enfermos. Um terço da população de Madrid exibia sintomas de uma gripe como jamais se viu. Atividades governamentais foram suspensas, o comércio fechou as portas, os bondes deixaram de circular. A Espanha havia sido capturada pelo medo da peste.


A PRIMEIRA ONDA
A primeira onda da gripe começou logo a se espalhar pelo mundo. As tropas aliadas referiam-se a esse surto como "a febre dos três dias", embora durasse em média uma semana. Manifestava-se através de rápida elevação da temperatura, o rosto ficava logo vermelho, a cabeça latejava, os ossos doíam. Esse quadro desaparecia após intensa transpiração, o corpo ficava dolorido durante 15 dias, e a gripe desaparecia. Na primavera de 1918, poucos perceberam que a epidemia havia atravessado o Atlântico e atingido os Estados Unidos. Cerca de mil operários americanos que trabalhavam na Ford queixavam-se de febre e moleza no corpo. Em abril, 500 dos 1.900 presidiários de San Quentin estavam doentes.

O maior número de baixas tinha ocorrido, entretanto, em um campo de treinamento no Kansas, onde cerca de 20 mil recrutas estavam sendo preparados para lutar na Europa. A epidemia alastrou-se por outros acampamentos do exército, mas as autoridades sanitárias não deram muita importância, gripes e resfriados eram comuns em áreas onde milhares de homens de diferentes cidades passavam a viver juntos, misturando-se e passando vírus de uns para outros.

 Os primeiros sinais de alarme ocorreram no final de maio quando a gripe apareceu na França. Tropas, inglesas, americanas, francesas e a população civil começaram a exibir os primeiros sintomas do vírus. No mês seguinte, ele chegava à Inglaterra, deixando o Rei Jorge V de cama. Logo depois alcançava a Ásia. Em junho, a gripe passou a interferir no curso da guerra. A Grande Frota do Rei Jorge foi abalroada pela pandemia antes mesmo de zarpar. Os seus 10.300 homens foram obrigados a desembarcar e permanecerem em terra durante três semanas, retardando o fim do conflito que só ocorreria em novembro.     

Nem os alemães foram poupados pela epidemia. Todos os dias, o   general Erich von Ludendorff amaldiçoava a gripe, dizia que ela debilitava  os  soldados e frustrava seus vitoriosos  planos de ataque  contra os Aliados.  Apesar de se ter espalhado pelo mundo durante a primavera de 1918 havia regiões do planeta onde a "influenzza", como era também conhecida, não tinha produzido   vítimas. A maior parte da África, Canadá e América do Sul não havia sido contaminada pelo vírus. Quando chegou o verão, os Estados Unidos e os países europeus sentiram extraordinário alívio. A gripe parecia ter desaparecido de vez sem deixar vestígios, como se jamais tivesse existido.

Alguns meses depois, em setembro, quase no fim da 1ª Grande Guerra, ela estava de volta como uma maldição. A segunda onda da gripe, além de extremamente contagiosa, havia-se transformado em uma peste assassina.  Escolhera como caminho de volta os lugares por onde não havia passado. Cerca de 80% das pessoas atingidas pelo vírus não conseguiam sobreviver. Ela era 25 vezes mais letal que sua antecessora e a gripe comum.

Os doentes morriam em questão de dias, ou mesmo de horas, com os pulmões entupidos de catarro. Na maioria dos casos, ela começava como se fosse uma simples gripe, os pacientes  respiravam com extrema dificuldade, deliravam com febre alta, sentiam calafrios, dores no corpo. Os pulmões infestados por bactérias, contraíam pneumonia, as pessoas contaminadas ficavam inconscientes, e morriam um dia depois. 

A SEGUNDA ONDA
A segunda onda maldita chegou aos Estados Unidos em agosto, trazida por um grupo de marinheiros desembarcados em Boston. Semanas depois começaram os óbitos. Em Fort Devens, Massachusetts, a 50 km a oeste de Boston, cerca de 60 mil soldados tinham sido contaminados por um tipo de pneumonia galopante jamais visto. Após serem infectados pela gripe, exibiam manchas castanho-avermelhadas no rosto, horas depois a cianose estendia-se por toda a face a partir das orelhas. A morte chegava em poucas horas. "Era difícil distinguir um homem branco de um negro", escreveu um dos médicos do acampamento. Os pacientes ficavam com falta de ar e morriam sufocados. Como não havia caixões suficientes, os corpos eram empilhados como sacas de arroz no necrotério do quartel. Os coveiros não tinham como enterrá-los porque também estavam doentes. Foram abertas covas coletivas e os mortos sepultados sem caixões, embrulhados nos próprios lençóis.

Enfermeira usa máscara durante a epidemia em 1918
Enfermeira usa máscara durante a epidemia em 1918 National Archive/Wikicommons

Os médicos militares patologistas enviados por Washington a Massachusetts ficaram horrorizados com que viram. O rosto dos soldados contaminados ficavam azulados, eles tossiam convulsivamente e o escarro que expeliam estava sempre tingido de sangue como se tivessem tuberculose. As enfermeiras sabiam que quando os pés dos doentes ficavam escuros, não havia muito o que fazer. Naquela época não havia também antibióticos nem respiradores como nos dias de hoje. Os médicos tratavam os pacientes com elixires e vacinas improvisadas que não produziam nenhum efeito, uma espécie de " sopa " preparada com sangue e muco dos pacientes. Antes de ser injetada, filtrava-se essa mistura para eliminar as células maiores, o resultado  era inócuo. Deixava apenas um braço inchado e dolorido. A "sopa" era incapaz de interromper a progressão da gripe. Os doentes continuavam sangrando pelo nariz, pelos ouvidos, pelos olhos. O rosto ficava azulado pela falta de oxigênio, morriam sufocados pelo excesso de líquido nos pulmões. 

Os patologistas enviados pelo Governo atribuíram inicialmente o expressivo número de mortes a uma espécie de envenenamento medicamentoso causado pela prescrição elevada de aspirina. Os médicos receitavam doses de 8 a 31 gramas por dia como parte do tratamento. O excesso de aspirina aumentava consideravelmente o número de glóbulos brancos no organismo. Os pulmões eram inundados por tamanha quantidade de líquido que acabava sufocando os pacientes. 

Não era só o excesso de aspirina que causava a chamada "tempestade de citonina", os glóbulos brancos também multiplicavam-se rapidamente para combater a gripe. Era uma reação exagerada das defesas do próprio organismo para enfrentar o vírus. O excesso natural de citonina, acrescido pelas doses elevadas de aspirina apressava a morte dos doentes.

Doze mil americanos faleceram de gripe em setembro, todos os acampamentos do exército nos Estados Unidos estavam infectados.  Acreditava-se que o surto talvez tivesse começado na Filadélfia em outubro, onde havia sido realizado um grande desfile público diante de  200 mil pessoas. O objetivo da festa era obter fundos para o esforço de guerra. Nenhum funcionário do serviço de saúde previu o desastre que estava a caminho.

Três dias depois, os 31 hospitais da cidade estavam lotados de doentes com graves problemas respiratórios. As pessoas contaminadas chegavam nos braços de parentes, em automóveis, transportadas em carroças e até em carrinhos de mão.  O mês de outubro foi trágico para os Estados Unidos, o país registrou cerca de 195 mil mortos na mais severa pandemia da história da humanidade.  Só os que não tinham sido infectados pela primeira vez não foram contaminados quando a gripe voltou de forma avassaladora. O organismo havia criado anticorpos e resistiu ao novo ataque do vírus.

Não existe uma estatística segura sobre a quantidade de mortes causada pela pandemia de 1918, engordada por uma terceira onda, em fevereiro de 1919, que se dissipou naturalmente em maio do mesmo ano. Cerca de 500 mil soldados e civis morreram nos Estados Unidos.  Estima-se que cerca de 100 milhões de pessoas tenham sido vitimadas em todo o mundo pelo vírus da gripe, número seis vezes maior que os 15 milhões de soldados abatidos em combate durante a 1ª Grande Guerra, no coração de uma Europa em escombros, que se considerava um exemplo de civilização, e se orgulhava de hospedar os maiores cérebros do planeta.

*Domingos Meirelles é repórter especial da Record TV e autor de As Noites das Grandes Fogueiras: Uma História da Coluna Prestes e 1930. Os Órfãos da Revolução



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